domingo, 16 de outubro de 2011

De quem é o mundo?

Alguém, certa vez, disse que o mundo é dos sensíveis. E é verdade, se pensarmos que os sensíveis são aqueles que percebem o mundo mais profundamente, os que são capazes de ler nas entrelinhas e captar o que está oculto sob as aparências. Sendo assim, para os sensíveis o mundo é mais complexo e infinito. Mas essa capacidade de perceber, essa sensibilidade, permite que se vislumbre o que há de mais belo e também o que há de mais terrível. Vê-se a pureza, a inocência, as maravilhas que compõem a natureza e as criações, mas vê-se também toda uma desordem, as desigualdades, as injustiças, a frieza, a maldade. Quando estas percepções são extremadas, pode um sensível sucumbir aos seus efeitos e não resistir, adoecendo ou mesmo morrendo devido à sua vulnerabilidade. Então, é relativo dizer que o mundo é dos sensíveis. Talvez o mundo seja demais para quem for muito sensível. E um hipersensível pode se sentir impotente diante dos desafios que o mundo e a vida apresentam.


O que parece mais evidente é que o mundo é dos fortes. Os fortes que conseguem viver centrados em suas crenças e opções, e que dispõem de uma habilidade para lidar com o lado prático da vida. Os fortes que preenchem o tempo com ocupações objetivas e desenvolvem grande capacidade de realizar. Os fortes que têm lá sua sensibilidade, mas que não se deixam abater pelos problemas dos outros. Não se afetam por aquilo que não diz respeito diretamente à vida deles. Sabem manter distância do que pode ser nocivo. E vivem convictos de que estão sempre certos. Não vacilam, não deixam espaço para as dúvidas. São fortes. E mais resistentes. Mas talvez nunca venham a conhecer algumas das mais interessantes nuances da vida.


Também há quem acredite que o mundo é dos loucos. Mas temos que pensar de qual tipo de loucura estamos falando. Muitos loucos já perderam e perdem suas vidas confinados em hospitais psiquiátricos, isolados do mundo. Estes loucos vivem num mundo à parte e restrito, de alguma forma perderam o trem da vida. Vale dizer que o mundo é dos loucos somente se estivermos nos referindo àqueles que concebem seu próprio mundo com liberdade e criatividade, e que de modo singular transitam pelo grande mundo, dando vazão aos seus sentimentos, sabendo lidar com seus fantasmas, exteriorizando suas ideias e dando asas à imaginação. Mesmo assim, sabemos de muitos loucos desse tipo, cheios de talento, que não encontraram seu lugar no mundo enquanto aqui viviam, e só foram reconhecidos depois de mortos.


Podemos também pensar que o mundo é das crianças, porque é na infância que o olhar é totalmente novo e curioso. Mas a infância, linda, fértil, rica, espontânea, é também dependente e incompleta. E é terreno suscetível a muitos espantos e traumas. Ainda há que se considerar que as crianças estão sujeitas aos adultos. Portanto, o mundo é relativamente das crianças. E quanto à adolescência a questão não é muito diferente. O adolescente é irreverente, tem ânsias por liberdade, por explorar e conhecer o mundo, mas falta-lhe a independência, a maturidade, a visão panorâmica que só vem com o tempo.


Talvez o mundo seja de todos nós, de todos os que o habitam. Cada qual no seu lugar, cada qual no seu papel, muitas vezes uma mesma pessoa em diferentes lugares e diversos papéis ao longo da vida. Lugares e papéis nem sempre claros e definidos, mas estabelecidos dentro desta trama de relações de que se constitui a vida, todos implicados, em maior ou menor medida.


E ainda existe a possibilidade de que o mundo não seja de ninguém. Nem seu, nem meu. Apenas um local por onde passamos por um tempo, construindo nossas histórias, vivendo nossas vidas. E esse mundo, repleto de histórias, repleto de vidas, é composto por inúmeros e diversos mundos que representam a peculiaridade de cada ser, de cada situação, de cada tempo e lugar, de cada cultura, de cada obra, de cada produção.

sábado, 15 de outubro de 2011

João do bem

João, nego veio, de coração grande e bom, sempre de bem com a vida, sempre pronto pra ajudar quando fosse preciso, não guardava mágoa nem ressentimento, nele não havia espaço pra maldade.

Quando João morreu, o sol começava a querer se por, mas a luz persistiu ainda um tempo. Olhei pro céu, calmo e infinito, e tive a certeza de que São Pedro esperava por João com as portas abertas.

sábado, 8 de outubro de 2011

Contingências

Eu não queria que isso tivesse acontecido. Mas não pude evitar. Sei que sou culpado, que fui inconsequente e irresponsável. Mas não tinha a intenção. A primeira dose foi para me animar e desinibir, para eu ter coragem de me aproximar da menina que eu queria. Depois, foram muitas outras pra manter o clima de empolgação. Nem sei quantas. Lembro de quando era criança e ficava junto com meu pai enquanto ele bebia aperitivos. Ele parecia feliz nessas ocasiões. Já eram altas horas da madrugada quando resolvemos ir embora da festa. Pretendíamos esticar até um motel, e eu estava entusiasmado por isso. Tive um pouco de dificuldade para ligar o carro, mas consegui e dei a partida. Só que, pela euforia, acelerei demais, e pela alteração nos reflexos, me perdi numa curva batendo de encontro a um poste. Justo com o lado dela. Ela era tão jovem, tão linda.


O feito, feito está. E neste caso foi um feito bastante grave. Somente o tempo amenizará a tua dor, a tua culpa. Mas, pelo menos, tu te importas com o que houve, e isso demonstra tua sensibilidade e teu arrependimento. Sempre voltas neste tema para falar comigo, prova de que buscas tomar consciência. E mais uma série de medidas que adotastes desde que houve o acidente, são também indicativos do teu sofrimento e da tua luta por amadurecer e superar o trauma.


Inúmeros foram os transtornos a que Lúcio foi submetido após este evento infeliz. As questões legais, o processo, a habilitação apreendida, as questões de saúde, especialmente a saúde mental comprometida, horas a fio de análise para tentar se entender e se perdoar por ter cometido um ato tão cruel e ao mesmo tempo involuntário. Lúcio nunca mais dirigiu um automóvel. Vive um fiapo de vida. E sonha que aquela menina ainda existe. No sonho eles estão juntos, numa festa, e combinam de ir até um motel.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Desgraça dada a ver

Num canto de um prédio, sob uma marquise, numa avenida movimentada de uma grande cidade, por algum tempo já, tem habitado um grupo de moradores de rua, três na verdade, que passam deitados no chão, com papelões e sacos cheios de bugigangas junto a eles. São muito sujos e esfarrapados, mas são pacíficos, não perturbam ninguém. Nem mesmo pedem esmolas, apenas sobrevivem passivamente contando com a cooperação de alguns transeuntes que, às vezes, lhes alcançam algum trocado ou algo para comer. E assim passam as horas, os dias, aparentemente conformados com a condição em que se encontram e solidários entre eles, repartindo tudo o que tem: a vida estreita que persiste e a miséria que os abriga e se exibe para quem quiser ver.

O mais velho deles, de cabelos e barba brancos, levanta-se e caminha até o armazém na travessa mais próxima. Entra e dirige-se à prateleira onde estão as garrafas de aguardente. A dona do armazém, uma mulher grande, gorda e forte, grita, em tom hostil, lá do fundo, do balcão:

- Não, não entra porque tu infesta tudo com o teu cheiro. Espera aí na rua que eu te levo o que tu quer.

Enquanto ela apanha a aguardente na prateleira e vai até a rua para vender para ele, ele responde, humilde e coerente:

- A senhora tem banho quente em casa, eu vivo na rua...

Ela entrega a garrafa para ele, pega de sua mão o dinheiro escasso e retruca:

- Vive na rua porque quer, podia ir pra um albergue e tomar banho como todo mundo.

Ele parte, calado, com a garrafa. Ela pega um aromatizador de ambientes e pulveriza todo o recinto, dizendo para os outros fregueses que não era a primeira vez que ele fazia isso. Diz ainda que o cheiro dele é insuportável e que prejudica o estabelecimento.

Para ela, depois que o morador de rua foi embora e ela perfumou o armazém, tudo voltou a funcionar normalmente.

Ele, mais humilhado do que de costume, sentia-se realizado porque, mal ou bem, tinha alcançado seu objetivo, estava com sua garrafa de cachaça em mãos, para dividir com seus parceiros e se preparar para enfrentar a noite que se aproximava, podendo assim ludibriar o frio, a fome e seu estado de desconforto total. O álcool, como sempre, proporcionaria um certo torpor e ajudaria a adormecer e esquecer de tudo. Dos tempos em que as coisas não eram tão ruins e ele até tinha sido um sujeito com alguma sorte, com alguma vida decente, com algumas histórias mais interessantes. De quando tudo começou a se complicar e ele se viu sem emprego, sem ter com quem contar, e foi se desestruturando gradativamente, desacreditando em si e nos outros, perdendo a confiança na vida, enxergando o mundo como um lugar imenso onde ele não conseguia se situar, e assim foi se degradando aos poucos, ficando sem dinheiro, sem ter onde morar, sem cabeça pra pensar, sem afeto que lhe garantisse a existência... E nem sabe explicar muito bem como foi que a rua se tornou sua casa. Tudo tão exposto e desprotegido. Ele sem nada para oferecer a não ser seu grande fracasso. Não conta com ninguém, mas depende de todo mundo. É tão difícil entender, é mais difícil ainda tentar sair deste buraco onde entrou. Sem amigos, somente colegas da rua, com quem de novo divide a cachaça e algumas lembranças, até que o sono o absolva mais uma vez.