segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Desgraça dada a ver

Num canto de um prédio, sob uma marquise, numa avenida movimentada de uma grande cidade, por algum tempo já, tem habitado um grupo de moradores de rua, três na verdade, que passam deitados no chão, com papelões e sacos cheios de bugigangas junto a eles. São muito sujos e esfarrapados, mas são pacíficos, não perturbam ninguém. Nem mesmo pedem esmolas, apenas sobrevivem passivamente contando com a cooperação de alguns transeuntes que, às vezes, lhes alcançam algum trocado ou algo para comer. E assim passam as horas, os dias, aparentemente conformados com a condição em que se encontram e solidários entre eles, repartindo tudo o que tem: a vida estreita que persiste e a miséria que os abriga e se exibe para quem quiser ver.

O mais velho deles, de cabelos e barba brancos, levanta-se e caminha até o armazém na travessa mais próxima. Entra e dirige-se à prateleira onde estão as garrafas de aguardente. A dona do armazém, uma mulher grande, gorda e forte, grita, em tom hostil, lá do fundo, do balcão:

- Não, não entra porque tu infesta tudo com o teu cheiro. Espera aí na rua que eu te levo o que tu quer.

Enquanto ela apanha a aguardente na prateleira e vai até a rua para vender para ele, ele responde, humilde e coerente:

- A senhora tem banho quente em casa, eu vivo na rua...

Ela entrega a garrafa para ele, pega de sua mão o dinheiro escasso e retruca:

- Vive na rua porque quer, podia ir pra um albergue e tomar banho como todo mundo.

Ele parte, calado, com a garrafa. Ela pega um aromatizador de ambientes e pulveriza todo o recinto, dizendo para os outros fregueses que não era a primeira vez que ele fazia isso. Diz ainda que o cheiro dele é insuportável e que prejudica o estabelecimento.

Para ela, depois que o morador de rua foi embora e ela perfumou o armazém, tudo voltou a funcionar normalmente.

Ele, mais humilhado do que de costume, sentia-se realizado porque, mal ou bem, tinha alcançado seu objetivo, estava com sua garrafa de cachaça em mãos, para dividir com seus parceiros e se preparar para enfrentar a noite que se aproximava, podendo assim ludibriar o frio, a fome e seu estado de desconforto total. O álcool, como sempre, proporcionaria um certo torpor e ajudaria a adormecer e esquecer de tudo. Dos tempos em que as coisas não eram tão ruins e ele até tinha sido um sujeito com alguma sorte, com alguma vida decente, com algumas histórias mais interessantes. De quando tudo começou a se complicar e ele se viu sem emprego, sem ter com quem contar, e foi se desestruturando gradativamente, desacreditando em si e nos outros, perdendo a confiança na vida, enxergando o mundo como um lugar imenso onde ele não conseguia se situar, e assim foi se degradando aos poucos, ficando sem dinheiro, sem ter onde morar, sem cabeça pra pensar, sem afeto que lhe garantisse a existência... E nem sabe explicar muito bem como foi que a rua se tornou sua casa. Tudo tão exposto e desprotegido. Ele sem nada para oferecer a não ser seu grande fracasso. Não conta com ninguém, mas depende de todo mundo. É tão difícil entender, é mais difícil ainda tentar sair deste buraco onde entrou. Sem amigos, somente colegas da rua, com quem de novo divide a cachaça e algumas lembranças, até que o sono o absolva mais uma vez.

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